Mulher, um dos termos mais subjetivos e abstratos que existem, não há definição exata do que é ser uma mulher, se é possível ser uma mulher. Um dos sentidos da palavra “mulher” no dicionário é “Na tradição, como indivíduo e/ou coletivamente, representação de um ser sensível, delicado, afetivo, intuitivo; fraco fisicamente, indefeso (o 'sexo frágil'), idealmente belo (o 'belo sexo'), devotado ao lar e à família (mulher do lar) etc.” , sabemos que, infelizmente, tal definição é a que mais se aplica, de certa maneira, no contexto cultural mundial, aqueles indivíduos julgados socialmente como “mulheres” possuem o dever imposto a possuir a beleza, a submissão e a morte de toda sua genialidade e importância sócio-cultural-econômica.
É impossível discutirmos o que é ser mulher sem citarmos Simone de Beauvoir,mãe do feminismo moderno e escritora de um dos livros mais importantes e revolucionários de todos os tempos, “O Segundo Sexo”, no livro a autora busca nos mostrar um ponto de vista sobre a construção e os fardos carregados por aqueles considerados “mulheres”. Com toda a certeza uma das frases mais impactantes escritas pela a revolucionária foi “Não se nasce mulher, torna-se”, podemos entender muitas coisas sobre a nossa sociedade analisando essa frase, ao final de toda leitura da autora sempre validamos essa inovadora citação e podemos perceber a aplicação da frase analisando,cuidadosamente, o mundo em que vivemos.Uma, entre as diversas causas, apontadas pela a escritora e , de longe, uma das mais explícitas,é a construção cultural que há em torno daqueles que nascem com o órgão reprodutor feminino, é um fato que desde pequenos esses indivíduos já possuem deveres e comportamentos impostos, na religião isso se torna mais evidente, quando em diversos momentos históricos e,até atualmente, diversas religiões invalidam a importância “feminina” na sociedade por meio de mitos e crenças, Simone também cita que a invalidação pode ser observada no contexto linguístico mundial, onde, em diversas línguas ocidentais, nos referimos a humanidade como “Os homens”, tirando de cena a relevância das “mulheres” na criação de uma sociedade, poderíamos ficar horas citando outros exemplos, pois a filósofa não falha nesse quesito. É inegável que o tema é complexo e extenso, mas sua discussão é mais do que importante, pois ela é urgente.
Sem sombra de dúvidas uma das maiores representações culturais e religiosas sobre o papel e a imposição de um padrão as “mulheres” é Eva, nascida da costela de um “homem”,incompleta, feita para servir, culpada pelos males do mundo, logo, amaldiçoada a uma vida imperfeita, longe da verdadeira felicidade e do paraíso , submissa de infinitas maneiras.Eva não é o único exemplo, em diversas religiões e construções sociais a “mulher” é vista como possuidora de uma maldição, da imperfeição e,principalmente, da culpabilidade, outro exemplo é Pandora que possui uma história muito similar a de Eva, podemos citar, também , Medusa, a qual foi violentada e humilhada por um dos maiores deuses do Olimpo, Poseidon, mas, mesmo assim, a culpa recaiu nela. Tais reproduções culturais refletem-se diretamente ao contexto dos dias de hoje, onde, em diversos cenários a culpa sempre retorna a “mulher”, independente dela ser ou não uma vítima. Podemos observar isso quando um grupo de extrema direita buscou culpabilizar uma criança de dez anos, a qual foi estuprada, não somente pelo o próprio tio, mas suspeitas apontam que o avô e outro tio também participavam dos estupros, alegações mostram que a “menina” sofria em tal cenário desde os seis anos de idade, a menina, infelizmente, engravidou, a mesma buscou pelo o seu direito de realizar o aborto previsto por lei em casos de estupro, mas foi humilhada e , ate mesmo, ameacada por terroristas extremistas, mas o que, de fato, assusta é a quantidade de pessoas que participaram de tal ataque e o quanto ele foi normalizado por uma parcela da populacao.
Um fato que é bastante perceptível e implícito nesse ponto da argumentação é que a sociedade julga todas aquelas “mulheres” que fogem desse modelo ideal. Podemos ,a partir de um exemplo dentre outros, tentar mostrar essa representação de pensamento, a partir de um mito, que, de acordo com alguns historiadores, estava presente na Bíblia Hebraica original, tal mito é o de Lilith, além disso a história é citada em algumas narrativas de textos judaicos e histórias medievais. De acordo com o mito, Lilith foi a primeira mulher de Adão, mas, diferentemente de Eva, ela foi criada do barro assim como o seu parceiro, mas, por esse motivo, ela não aceitou ser submissa ao “marido”, então a personagem proclamou o nome de Deus em vão e fugiu do Jardim do Éden em direção ao Mar Vermelho, morada de demônios e criaturas das trevas; após o ocorrido Adão caiu em desgraça, ficando, por algum tempo em um sono profundo, Jeová mandou três anjos para tentarem convencer Lilith de retornar ao Éden e para seu par, a mesma, obviamente, negou, Deus, então, amaldiçoou Lilith, transformando-a, de vez, em um demônio, substituindo ela por Eva, essa criada pelas costelas de Adão; depois disso Lilith se apaixonou por Lúcifer, figura controvérsia, considerado por algumas doutrinas o Rei do Mal, mas por outras, um revolucionário, o qual se casou, o mesmo prometeu igualdade a ela. Lilith é considerada, até os dias de hoje, mas principalmente na era medieval, a Rainha de todos os Males do mundo; não estou aqui para julgar ou condenar a religião de alguém, mas é perceptível, por meio da lógica, desconsiderando crenças pessoais ou religiosas, que Lilith foi julgada injustamente, somente por querer a liberdade de seu corpo e sua história , podemos observar esse fenômeno na “realidade”, onde toda “mulher” que tenta conquistar os seus direitos e sair do padrão, definitivamente , imposto, de alguma maneira, será julgada pela a sociedade, seja saindo do padrão de uma beleza moldada pela teoria da juventude eterna, seja conquistando sua independência financeira ou , simplesmente, não querendo ter filhos, novamente, esses apenas alguns exemplos, mas o fato é que a sociedade, ou melhor, as elites de cada tempo, censuram toda tentativa de mudança, pois elas sabem que isso impactaria muitas de suas bases e sem essas bases sem controle.
“Todas as manhãs ela deixa os sonhos na cama, acorda e põe sua roupa de viver ”, frase retirada de um dos livros de uma das mais ilustres e emblemáticas figuras da história brasileira, Clarice Lispector, nesse trecho da narrativa ela conta as melancolias em torno do dia de uma típica “mulher contemporânea” , onde todos os sonhos da personagem foram esmagados não somente por ela mesma, mas, também , pela sociedade; a monotonia e uma falsa felicidade reinam no dia-dia da personagem, onde, toda vez que chega a noite, ela desaba em si e é o único momento que, mesmo triste e sozinha, ela se sente completa, pois ela não precisa fingir para cativar pessoas que, nem ao menos, ela considera por completo, porém se força agradar, assim ela sonha, para ela mesma, pois no sonho ela pode ser quem quiser, sem julgamentos, padrões ou amarras, “É onde ela sorri’, escreveu Clarice, definindo a maioria das “mulheres contemporâneas”, que só são possibilitadas de um pingo de felicidade em suas cabeças, pois lá não há correntes, essa gota as faz seguir em frente e acreditar que viver vale a pena.
Ao decorrer do texto vemos que existem várias figuras culturais que implicam na submissão feminina, mas uma em particular, ainda não citada, me impressiona, Helena de Tróia, talvez porque sou apaixonado por toda a literatura greco-romana, mas pessoalidades a parte. Helena foi uma dentre as centenas de outras figuras históricas- culturais femininas que foram culpadas pelos os “males do mundo”, foi retratada na mitologia grega, a história diz que Helena era a protegida de Afrodite, a deusa da beleza e do amor, e , por isso, ela era considerada a mulher mais bela do mundo, mas, na verdade, Helena é advinda de Esparta, cidade onde era rainha e casada com o rei; contudo houve um incidente entre os deuses gregos que Afrodite, Hera e Atena disputavam a posição de deusa mais bela, onde escolhem Pares, na época um simples pastor, mas que logo seria descoberto como herdeiro do trono de Tróia; Afrodite suborna Pares oferecendo a ele o amor da mulher mais linda do mundo, em troca ele só precisaria escolher-a como a deusa mais linda, assim ele o fez, fazendo a deusa ter que cumprir seu juramento, porém , na época, a mulher mais bela do mundo era Helena que era casada com o rei de Esparta, Menelau. Em uma festa diplomática Menelau convida a “embaixada” de Tróia para o evento, Pares foi o escolhido por seu pai para comparecer ao evento, na ocasião Helena e o príncipe estrangeiro se apaixonam, a abençoada de Afrodite decide fugir para Tróia com seu amado, despertando, assim, a fúria de seu ex marido. Menelau convocou todos os reinos gregos para a guerra, pois eles possuíam um tratado onde juravam proteger e lutar caso algo acontecesse com Helena, porque, antes de seu casamento com rei, ela foi disputada por todos os reis gregos e a deram uma chance de escolher seu pretendente, porém independente da escolha de Helena os reis deveriam prezar pela sua segurança e amor, originando, assim, a Guerra de Tróia, onde muitas tradições filosóficas apontam Helena como a culpada. Analisando a história podemos chegar a conclusão que Helena não teve muitas escolhas, pois teve seu livre-arbítrio rasgado por ambas as partes da história , tanto por Afrodite que a controlou para o seu favor e tanto pelos gregos que a isentaram de seus “desejos” e , mesmo assim, ela foi culpada pela a guerra, mas infelizmente não havia ninguém para a proteger. Acredito que a história de Helena se reflete na história de muitas mulheres mundo afora, onde, apesar de manipuladas, ofendidas e privadas, a culpa sempre recai nelas, pergunto-me eu, quantas Helenas de Tróia existem vagando pelo o mundo ? Com Certeza muitas.
-Por Fernando Trevisolli de Britto
Comments